terça-feira, 25 de janeiro de 2011

CORPO E APRENDIZAGEM: UM DIÁLOGO ACERCA DO MOVIMENTO HUMANO

CORPO E APRENDIZAGEM: UM DIÁLOGO ACERCA DO MOVIMENTO
HUMANO

ZIMMERMANN, Ana Cristina – CED / UFSC – anacristinaz@click21.com.br
GT: Filosofia da Educação / n.17
Agência Financiadora: Sem Financiamento

Introdução

Muito do que conhecemos sobre o movimento humano são análises
biomecânicas, fisiológicas, anatômicas entre outras, mas pouco sabemos sobre o ser que
se movimenta, ou, sobre o movimento como diálogo com o mundo. Considerando
elementos da fenomenologia de Merleau-Ponty pretendemos encaminhar uma reflexão a
partir das contradições suscitadas pelo debate acadêmico na compreensão do
movimento humano. Os direcionamentos das teorias da aprendizagem motora, entre
outros elementos teóricos da área, sustentam-se pela valorização de uma ciência que se
rendeu à técnica. Entretanto, é possível ignorar que na aprendizagem do movimento
existe mais do que gestos técnicos? O corpo reúne nele mesmo os paradoxos do mundo
da vida, quando temos que pensar o corpo nos deparamos com as limitações de nossos
conceitos. Neste sentido, as contribuições das ciências da educação são fundamentais,
posto tratar-se de um estudo sobre aprendizagem.
Em contrapartida as reflexões aqui encaminhadas poderão sugerir a recuperação
do espaço da corporeidade nas experiências de aprendizagem como elemento coletivo, o
reconhecimento do potencial expressivo do corpo e do papel da expressividade na
construção de conhecimentos. Assmann (1995) destaca o valor decisivo das
contribuições acerca da corporeidade para o campo educacional e político defendendo a
idéia de que “a corporeidade não é fonte complementar de critérios educacionais, mas
seu foco irradiante primeiro e principal” (p.77).
A sugestão aqui apresentada é, não necessariamente explicar o movimento
humano, mas a partir dele verificar a possibilidade de estabelecer um diálogo filosófico,
inscrito sobretudo na educação, que redirecione os questionamentos na compreensão do
movimento humano. Se a aprendizagem se dá no coletivo não precisamos
necessariamente de uma teoria da aprendizagem motora, mas de uma teoria de
aprendizagem que considere o movimento como a própria expressão do ser humano.
Diferentemente daquilo que as teorias behavioristas e associacionistas
promulgam em relação à formação do hábito, a prática desportiva não ratifica a tese de
que o hábito desportivo seja uma repetição. Os treinamentos de repetição não são
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suficientes, tampouco eficientes para a consolidação de hábitos motores, o que na área é
tradicionalmente admitido pela rápida associação à idéia de automatização. Há sempre,
nos gestos esportivos, algo de inédito, o que torna problemática a fronteira entre o
adquirido e o criado. Essa problemática é investigada pela fenomenologia de Maurice
Merleau-Ponty. Na Fenomenologia da Percepção (1994) Merleau-Ponty desenvolve
uma teoria do hábito que identifica esse caráter ao mesmo tempo tributário em relação
ao passado, mas inovador. Para Merleau-Ponty o hábito só está adquirido quando
incorporado a um comportamento novo, do qual aquele é como um horizonte. Uma vez
aceita tal definição é possível sugerir que o praticante não adquire um hábito senão
quando se torna capaz de exercer sua capacidade criativa, à qual lembra, de certo modo,
o conceito de expressividade ou intencionalidade corporal.
O estudo da aquisição do hábito esportivo, a partir desta perspectiva, pressupõe
um olhar sobre o “se movimentar” e sobre o corpo que pode reorientar muitas outras
questões associadas à educação. O que a experiência do movimento revela ao ser
humano?
Entrelaçamento corpo/mundo
“O corpo é o veículo do ser no mundo, e ter um corpo é, para um ser vivo,
juntar-se a um meio definido, confundir-se com certos projetos e empenhar-se
continuamente neles” (MERLEAU-PONTY, 1994, p.122). Toda percepção se dá no
mundo, não é subjetiva, não está dentro de mim, mas é mediada por um corpo, e o corpo
é o hábito. O hábito é uma co-presença não evocada, co-presença de um passado que
está a disposição. Entretanto, tenho um hábito (passado), mas tenho também a
capacidade de criação (horizonte futuro), de instaurar uma nova conduta.
A cada novo movimento “os movimentos já realizados apresentam-se
espontaneamente como alternativas à minhas espacialidade, sem que eu os precise
evocar” (MÜLLER, 2001, p.195). O professor pode tentar reduzir determinado
movimento a indicações objetivas, mas o praticante nem sempre sabe descrever
objetivamente seus movimentos e só vai aprender fazendo. Este ‘fazer’, entretanto, não
está comprometido com a idéia de repetição.
“Se o hábito não é nem conhecimento nem um automatismo, o
que é então? Trata-se de um saber que está nas mãos, que só se
entrega ao esforço corporal e que não se pode traduzir por
uma designação objetiva.(...) O hábito não reside nem no
pensamento nem no corpo objetivo, mas no corpo como
mediador de um mundo” (MERLEAU-PONTY,1994, p.199-
201).
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Dirigimos-nos a um futuro a partir de um hábito, mas este hábito se abre para
algo novo, eis a expressão do corpo próprio na presença de uma espontaneidade que não
segue instruções pré-determinadas. Espontaneidade aqui não significa abandonar uma
historicidade, mas poder construir algo, partir para o inédito, escoar, transcender, “uma
vez criado um fluxo expressivo, não há mais a necessidade de comandar os
movimentos: a expressão organiza ela mesma o corpo” (HELLER, 2003, p.61).
Transcender não é ir além do corpo, é entregar-se a outra corporeidade, interromper a
própria motricidade para que outra se revele. O movimento se apresenta como uma
resposta a uma interrogação, mas neste sentido, o corpo “habita” o espaço e o tempo,
não apenas se submete a eles, mas retoma-os. Tal forma de habitar só é possível a um
corpo enquanto potência de ação.
O prejuízo da concepção mecânica de técnica está em pressupor a representação
do corpo e do movimento envolvidos em relação causal. Ao desenvolver a teoria do
hábito Merleau-Ponty rompe com a ontologia do ser-em-si e do ser-para-si. Ao
reconhecer o entrelaçamento corpo-mundo, refuta a idéia da natureza como conjunto de
partes exteriores entre si, oriunda da tradição objetivista, reconhecendo no hábito uma
relação ambígua. Os gestos nos encaminham a um futuro que está se anunciando, para o
qual o hábito não dá conta e precisa ser retomado como motricidade espacial expressiva.
Ao reconhecer a presença de uma espontaneidade ensinante, o espaço da contingência,
uma solicitação do mundo, refuta o subjetivismo e a supremacia da representação.
Aprendemos com o corpo, mas não um corpo instrumental, e sim com o corpo
que somos e que constrói o mundo a cada momento, que flui no tempo e que se abre
para um horizonte de possibilidades. O mundo não é algo exterior ao corpo, mas está
integrado à existência pragmática, é sempre aquilo para o que o corpo se polariza.
“Sistema de potências motoras ou de potências perceptivas, nosso corpo não é
objeto para um “eu penso”: ele é um conjunto de significações vividas que caminha
para seu equilíbrio” (MERLEAU-PONTY, 1994, p.212). O corpo não representa uma
coisa, mas um ponto de vista, uma atitude, é a apresentação de um sujeito que não
precisa se representar para existir. Trata-se de um “eu operante”, investido de
possibilidades, que independe do entendimento, um “eu posso” irrefletido. “O
movimento não é o pensamento de um movimento, e o espaço corporal não é um espaço
pensado ou representado” (MERLEAU-PONTY, 1994, p.192). A motricidade não está
a serviço da consciência, compreender o movimento é incorporá-lo. Enquanto
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“contamos passos” e mentalizamos partes de um movimento, por exemplo, ainda não
aprendemos a dançar e isso bem o sabemos; a dança exige mais, e este ‘mais’ é o que
precisamos construir, ou deixar-se construir a partir de uma historicidade. O corpo
compreende quando o movimento torna-se um só e experimentamos o acordo entre o
que visamos e o que é dado.
O fato é que temos o poder de compreender para além daquilo que possuímos,
caso contrário não haveria aprendizagem, e isto não se explica apenas pela compreensão
de pertença ao mesmo mundo, mas pela presença de um não-saber, de um espaço para a
elaboração. Da mesma forma, a experiência da comunicação revela não uma
coincidência, mas uma diferença. No diálogo, para se dizer alguma coisa, é preciso não
dizer tudo (MERLEAU-PONTY, 2002).
A experiência do outro
Merleau-Ponty (1994) sugere em sua teoria da expressão dois tipos de fala:
aquela que ele denomina fala falada e a fala falante. A primeira diz respeito a
“pensamentos já constituídos e já expressos dos quais podemos lembrar-nos
silenciosamente” (MERLEAU-PONTY, 1994, p.249) e simplesmente evocá-los; são
conceitos, formulações que não nos apresentam novidade, não têm sentido por si só. A
segunda, a chamada fala falante, é aquela constituída no mesmo momento do
pensamento, não são palavras novas (ou até podem ser), mas novas formulações com os
símbolos que fazem parte do universo de comunicação. É esta fala expressiva a
manifestação da aprendizagem. Através da fala falante estabeleço um novo uso ao que é
habitual e esta situação sempre é mediada pelo outro.
O outro aparece na surpresa, é aquele que me esconde um perfil que eu desejo,
está constantemente me provocando, quando se comporta de forma inesperada
(MERLEAU-PONTY, 2002). O outro representa para mim, eu mesmo, mas também
exprime um outro de mim, que me leva a uma experiência de descentramento, na qual
eu me transformo em outro eu mesmo. Quando se estabelece o diálogo? Quando surge
algo que não pertence ao meu domínio, quando há uma quebra em relação ao que já
estava previsto. Não se trata de um corpo que se apropria de novos conhecimentos, mas
de um corpo arrebatado que desloca sua corporeidade em direção ao que ainda não sabe,
porém intui como possibilidade. O “eu” que está em comunicação com o mundo é
aquele que está descentrado. O descentramento é a manifestação da alteridade, o
declínio do saber. A comunicação é um movimento de transcendência fundado na
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incerteza. O que chamamos de “entendimento” é o próprio fluxo que se estabelece de
diferença a diferença, de interrogação a interrogação.
Antes do outro, o mundo é uma extensão do meu corpo, com o outro, o mundo é
uma possibilidade de intermédio entre mim e o outro. Uma co-relação na qual
modificamos e somos também modificados. Neste caso, quando participantes de um
mesmo campo, o gesto de um é algo de que o outro participa.
Considerações Finais
A possibilidade de compreensão do fenômeno de aquisição da linguagem
fundada no gesto corporal e na expressividade configura uma contribuição às teorias da
educação. O estudo do hábito permite um elogio à historicidade, mas uma historicidade
que se apresenta como potência diante de um mundo que também se apresenta e a
solicita. Ou ainda, o estudo do corpo revela muito mais do que traços biológicos.
A aprendizagem precisa da experiência e da motivação da surpresa do outro,
naquilo que ele nos revela de nós mesmos. O outro pode garantir o inesperado, pode
exigir de mim reações diversas, criações, e assim tem a possibilidade de ensinar. O que
estabelece a comunicação? A identidade na diferença, me comunico na incerteza, na
presença de um não saber. Eu só posso criar a partir daquilo que não sei de mim mesmo,
quando me entrego a uma experiência, quando sou mobilizado para reconhecer uma
diferença e vislumbrar uma potencialidade para além da realidade. Este outro não é o
que dá sentido a minha vida, mas necessariamente algo que não faz sentido.
Referências
ASSMANN, H. Paradigmas educacionais e corporeidade. Piracicaba: Unimep, 1995.
HELLER, A. A. Universidade Federal de Santa Catarina. Ritmo, motricidade,
expressão: o tempo vivido na música. Florianópolis, 2003. 175 f. Dissertação
(Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
MERLEAU-PONTY, M. A prosa do mundo. Trad. P. Neves. São Paulo: Cosac &
Naify, 2002.
______ Fenomenologia da percepção. Trad. C.A.R. de Moura. São Paulo: Martins
Fontes, 1994.
MÜLLER, M. J. Merleau-Ponty: acerca da expressão. Porto Alegre:EDIPUCRS, 2001.

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